Se minha analista falasse #01
geladeiras, nostalgia, caminhos do desejo e câmeras analógicas
Se minha analista falasse é uma edição aberta a todos os assinantes. Aqui nós nos juntamos pra falar sobre a vida, séries, filmes, livros, sexo, pataquadas e perrengues. Talvez, se sua analista falasse, ela falaria disso… ツ
Viver é etcétera
Teve uma news da Natália Borges Polesso sobre sua geladeira nova, e num dos comentários eu descobri uma fotógrafa japonesa que fez uma série fotografando… geladeiras.
Tudo começou no início da década de 80, quando o marido de Ushioda comprou uma geladeira antiga, grande e barulhenta demais para a casa onde moravam com seu bebê. Imaginem só o caos. A geladeira congelava os alimentos que não deveriam ser congelados e estragava os outros, além de emitir sons tão altos que a impediam de dormir. Tudo isso com um bebê. Só imaginem a balbúrdia!
Foi aí que eu pensei que geladeiras são mesmo muito peculiares, e o que antes eu achava tão mundano a ponto de passar despercebido ganhou um contorno animado no meio da minha quarta-feira.
Na infância eu visitava a casa de um amigo e dentro da sua geladeira tinha sempre uma surpresa: um santo Antônio pequenininho, virado de cabeça pra baixo. A primeira vez que eu vi foi um arraso, achei o máximo aquela transgressão!
“Quando quiser namorado, congela o santo, que santo congelado responde mais rápido”
Na casa de minha avó, geladeira é coisa que se olha o tempo todo, por isso tem ímãs com a cara de pessoas amadas. Por isso hoje, na minha geladeira, tem uma foto do meu sobrinho na sua primeira comunhão, ainda criancinha. As mãos juntinhas em reza, a carinha de anjo… toda vez que olho pr’aquela foto lembro que ele parou no hospital ano passado por ter consumido muita cachaça com energético, rs.
Toda essa descoberta da fotógrafa me lembrou uma frase do Winnicott: “encare o mundo de forma criativa; crie o mundo; só o que você cria tem significado pra você”
A fotógrafa tava lá, tentando sobreviver com um recém nascido e não enlouquecer com a cagada que o marido fez e, por isso, inventou. Fez uma construção em cima do que poderia ser um desastre. Não deixa de ser o caminho que se percorre em uma análise. Usar a criatividade para saber fazer com isso que nos acontece. A vida não é isso?
(Ahh, e pra quem é de São Paulo, a série de Ushioda pode ser vista gratuitamente na exposição “A vida que se revela”, em cartaz na Japan House SP, até 13 de abril!)
Eis que eu estava de bobeira no instagram e vejo os stories da Camila Menezes , e vejam só a geladeira fazendo uma aparição super importante no sintoma:
Eu sempre gostei de museus. Uma máquina do tempo, cápsula que resguarda o passado e te teletransporta de volta a ele só podia mesmo virar xodó de uma nostálgica convicta. A primeira significação de nostalgia quando abrimos o dicionário é:
- Saudades de algo, de um estado, de uma forma de existência que se deixou de ter; desejo de voltar.-
A segunda, remete à melancolia. Faz todo sentido. Poucas angústias são mais gritantes que a de viver enroscada no passado. Eu sei bem, mas nem sempre soube.
Desde criança era de elaborar diários, acumular objetos e olhar para o calendário dizendo “Ano passado foi bem melhor!”, e quase nunca era. A questão com a nostalgia muitas vezes é essa: Pegadinha inconsciente, truquezinho barato, telefone sem fio contando histórias pela metade. O nostálgico sente mais falta do sonho do que da própria realidade. Eu sei bem, mas nem sempre soube.
Talvez não coincidentemente escolhi a psicanálise como trabalho. Quer lugar onde passado e memória são mais honrados do que dentro de um consultório clínico?
Me apaixonei à primeira vista pela possibilidade de jogar passado, presente e futuro na mesa para montar junto a tantos alguéns seus quebra cabeças particulares. Uma peça sempre haveria de faltar, isso é batata. O passado se mostrava presente em cada ato falho travestido de fala despretensiosa, a cada chiste com fundinho de verdade, e o futuro, coitado, ficava lá, esperando pela mediação do sintoma. Era lindo! Maior barato! Pena que com as minhas próprias peças eu não era tão habilidosa.
Precisei labutar pelos divãs afora para poder retirar meu passado do pedestal e costurá-lo de outra maneira. Costurá-lo de uma maneira furada. Menos intocável, menos mística, quem sabe. Com mais trabalho ainda, enfim o tirei do antiquário. Ali vi preciosidades inestimáveis, mas também vi bugigangas de estimação que eu teimava uma vida inteira que eram ouro. Coloquei tudo em xeque. Doeu. Como todo colecionador de cacarecos que precisa encarar suas quinquilharias cativas, sofri um bocado. É o que acontece quando limpamos as lentes da velha lupa. Depois vem os refrescos. Olhei com outros olhos para várias cenas repetidamente contadas por mim do mesmo jeito, e ganhei novas perspectivas. Foi estranho. Esbarrei com o presente de viver o agora atravessada pelo passado, mas não sob sua custódia.
Hoje eu sei bem, mas nem sempre soube.
Tenho assistido a série Invejosa, da Netflix, e gostado bastante. É divertida; gosto da forma como a série brinca com o caos da vida, com o descompasso entre o que planejamos e o que acontece de fato. Vicky (Griselda Siciliani) tem 39 anos e um plano. Um plano com P maiúsculo, meticulosamente traçado, revisado e passado a limpo tantas vezes que se tornou um contrato vitalício consigo mesma. Nele, cada detalhe está previsto: o relacionamento ideal, o casamento perfeito, a vida sem tropeços. Mas a vida, com seu senso de humor peculiar, insiste em desviar o trajeto. E quando algo não acontece conforme o planejado, Vicky se desorganiza bastante.
Ela busca o que idealizou e vive em uma dinâmica de constante insatisfação. As amigas são ótimas, mas casaram antes dela. O namorado é carinhoso, mas muito passivo. Quando a possibilidade do casamento chega, ela não sabe se quer essa vida, apesar de tê-la planejado durante anos. Mesmo no cenário perfeito dentro da própria idealização, algo não encaixa. Penso que nem sempre é fácil trilhar outros caminhos que não os imaginados. O caminho que já estava desenhado, que parecia certo, seguro, concreto. Mas então, de repente, outro percurso se abre: um atalho, uma curva inesperada, uma trilha que ninguém planejou. Seguir por ali pode fazer mais sentido, mas algo nos freia. O medo de errar, de perder tempo, de se perder de vez.
Recentemente, descobri e escrevi sobre o projeto do fotógrafo Diego Bresani chamado “Caminhos do Desejo”, que são trajetos mais curtos e intuitivos que as pessoas percorrem, ignorando as rotas planejadas pelos urbanistas. São atalhos que não estavam no mapa, mas se tornaram caminho porque alguém passou por ali. Gosto de pensar que a vida também se desenha assim: não só pelo que escolhemos, mas pelo que insistimos, pelo que nos atravessa, pelo que nos permite desviar.
Concordo com aquela frase famosa e que pode parecer clichê que diz que a gente faz de tudo para evitar a dor, inclusive sofrer muito. Vicky evita olhar para sua idealização de maneira muito minuciosa. Sabe que pode se deparar com a falta de desejo de percorrer esses caminhos feitos de concreto, esbarrando na própria confusão, no caos. Talvez Vicky possa nos ajudar a olhar com mais carinho para a vida que não cabe no planejamento, que sai rabiscada, borrada e cheia de notas de rodapé.
✸ Ah, uma observação final, caso você tenha se interessado pela série: a dinâmica de Vicky com sua analista, Fernanda (Lorena Vega), é interessantíssima. É um dos poucos lugares em que podemos ver a personagem, sempre tão certa, mais vulnerável e, ao mesmo tempo, aberta para colocar sua agressividade – em termos winnicottianos – no mundo. Mas isso fica para outra edição.
Fabular e criar (com as) memórias
Esses dias, enquanto organizava uma estante, encontrei minha câmera analógica - muito parecida com aquelas que povoaram minha infância. Mas esta, por sua vez, foi comprada depois do retorno da fotografia analógica. Ela já está comigo faz algum tempo - não sei bem mensurar quanto, talvez anos. Pela primeira vez, a olhei e me peguei refletindo. Me lembro de comprar a câmera, o filme, as pilhas. Pronto, já tinha ali tudo que precisava. Estava certa de que tiraria muitas fotos e logo levaria aquele filme para revelação. Não foi o que aconteceu. Anos se passaram, o filme permaneceu dentro dela. 19. Esse é o número de fotos que já foram tiradas. O mostrador me conta, porque também não saberia mensurar em números as memórias que ali ficaram.
Hoje, me sentei para escrever sobre memórias, sobre o tempo, sobre a viagem que é a escrita, sobre fabular uma vida. Lembrar é criar, foi uma frase que ouvi recentemente. E, enquanto as palavras viraram texto, não pude deixar de me encontrar com aquela imagem que agora parecia tão simbólica: Uma câmera analógica na estante, um filme que carrega a história de diferentes momentos, o meu movimento de guardar e, então, fabular: o que este filme guarda? Já me peguei muitas vezes rindo e pensando: o que será que tem ali? Será que terão fotos daquele dia ensolarado que viajamos para tal lugar? Será que conseguimos capturar tal momento? Será que terão fotos da casa que morei no ano passado?
Mas, afinal, será que eu realmente quero saber o que tem ali? Será que prolongar a revelação não é uma forma de seguir imaginando, fabulando? Pode ser. Mas agora, depois de ouvir aquela frase que me conta que lembrar é sempre criar, já me sinto pronta para revelar o filme. Sei que continuarei podendo construir e criar tantas coisas mesmo com a imagem ali, revelada diante de mim.
O que se revela então em uma imagem?
Talvez a revelação seja, de fato, a de que sempre existirá, em cada memória, uma criação.
Talvez o meu medo fosse de que a imagem fechasse e encerrasse uma memória,
mas agora penso o contrário: a cada vez que olhar para uma mesma imagem, um mesmo momento, um mesmo lugar, verei uma coisa diferente — criarei uma coisa diferente — então esse texto é um convite. Talvez você possa, por aí, se deixar habitar por suas imagens, encontrar suas paisagens particulares e continuar fabulando com elas.
Recentemente também, conheci o livro da Patti Smith - Um livro dos dias e achei de uma sensibilidade tão grande. Um ano representado por fotos e palavras. Não se trata, no entanto, apenas sobre a memória que ela criou e ficou registrada ali. Mas sim sobre a memória que ela cria a cada dia que revisita aquelas imagens. Uma história construída através do tempo. Uma história que entrelaça os tempos. Ela que viveu, ela que registrou, ela que revê o que foi registrado. Naquele momento estão todas ali, juntas. Em um só tempo, em uma só história. Numa criação contínua. Que se revela, a cada momento.
Algum tempo atrás, a Aline Valek compartilhou uma frase que me marcou muitíssimo. Vou usá-la para encerrar por aqui e deixar, novamente, o convite a essa viagem por nossas imagens, memórias e histórias cotidianas. <3
- Memória e ficção são as únicas formas de viajar no tempo.
♡
Que delícia fazer parte desse projeto! A escrita mais uma vez proporcionando encontros incríveis. Tá lindo! ♡
Que News poderosa!! Me encantou demais cada uma com sua escrita, seu tom, seu pensar, tão diferentes e ainda assim tão parecidas e acolhedores 🤍 que leitura! Ansiosa para as próximas, parabéns pelo projeto. ✨